quinta-feira, 3 de novembro de 2016

"Catch-22" ou a espera pela identidade


Não vou fingir que conheço bem o livro de Joseph Heller, Catch-22. Na verdade, agora mesmo fui ler um daqueles breves resumos que ficam à distância pouco erudita de um clic. Porém, o facto é que em 2011, quando vim para a Suécia, e sempre a propósito dos labirintos burocráticos em que me via perdida, havia quem me falasse de um tal "momento 22" - tradução sueca de um romance satírico e absurdo que, por exemplo, espelha puzzles irresolúveis de organizações e serviços públicos. Eu chamar-lhe-ia, em analogia piscatória e muito menos literária, uma pescadinha-de-rabo-na-boca.

Eis que cinco anos mais tarde, por culpa de experimentar e (talvez) comprar um par de sapatos, me roubaram do bolso do casaco o telemóvel e documentos, atirando-me de volta, anacronicamente, para um momento 22. E nele estive sem identidade durante uns dias. Posso contar-vos que, para atestar que Eu era (sou) Eu, foi preciso pedir ao meu chefe que me acompanhasse às finanças e que esperasse comigo uma hora na fila.

Neste momento, regresso à lux da existência formal. Entregam-me, cintilantes, novos cartões do banco (como é que se vivia antes?) e estão pedidas segundas vias de documentos essenciais. No entretanto, valeram-me amigos e conhecidos disponíveis e generosos.

O telefone esperto, um companheiro prático mas também um consumista desenfreado de tempo (do meu tempo, pelo menos), esse vai continuar na escuridão. Ou seja, não vou para já tratar de adquirir um novo. Vou antes tentar reinventar formas de comunicar. Não se admirem se vos enviar postais ou até mesmo corvos com mensagens. "Winter has come", até podem ser corvos brancos.
[ Está alguém aí perdido nesta última referência? É porque não vê o Game of Thrones ;)  ]

Enquanto estas duas dezenas e pouco de hiato iam passando, veio mesmo o Inverno. Um bom desbloqueador de conversa, aliás, para filas de espera. É também uma espécie de anacronismo (o segundo relatado neste texto) se tivermos em conta o longo Verão que, ao mesmo tempo, ainda se fazia sentir em Portugal.

Já caíram dois dias de neve, mágico à primeira vista. Tocada a vento, varre-se-lhe a magia. É Novembro e os graus negativos não parecem ter vergonha de chegar.