quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Viagem ao Presépio: recortes de estórias para esta noite


De Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos Exemplares:
«[...] Fito em meu redor a solenidade das coisas como quem tenta decifrar uma escrita
difícil. Mas és tu que me lês e me conheces. Faz que nada do meu ser se esconda. Chama à tua claridade a totalidade do meu ser, para que o meu pensamento se torne transparente e possa escutar a palavra que desde sempre me dizes.
Primeiro pareceu a Gaspar que a estrela era uma palavra, uma palavra de repente dita na muda atenção do céu.
Mas depois o seu olhar habituou-se ao novo brilho e ele viu que era uma estrela, uma nova estrela, semelhante às outras, mas um pouco mais próxima e mais clara e que, muito devagar, deslizava para o Ocidente.
E foi para seguir essa estrela que Gaspar abandonou o seu palácio.»
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«Nessa noite, depois da Lua ter desaparecido atrás das montanhas, Melchior subiu ao terraço e viu que havia no céu, a Oriente, uma nova estrela.
A cidade dormia, escura e silenciosa, enrolada em ruelas e confusas escadas. Na grande avenida dos templos já ninguém caminhava. Só de longe em longe se ouvia, vindo das muralhas, o grito
de ronda dos soldados. E sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos sonhos onde os homens se perdiam tacteando, como num labirinto espesso, húmido e movediço, a estrela acendia, jovem, trémula e deslumbrada, a sua alegria.
E Melchior deixou o seu palácio nessa noite.»
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«E tendo passado pelos três altares, Baltasar interrogou os sacerdotes:
— Dizei-me onde está o altar do deus que protege os humilhados e os oprimidos, para que eu o implore e adore.
Ao cabo de um longo silêncio, os sacerdotes responderam:
— Desse deus nada sabemos.
Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido atrás das montanhas, subiu ao cimo dos seus terraços e disse:
— Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilhação, o olhar da paciência. E como pode aquele que viu estas coisas não te ver? E como poderei suportar o que vi se não te vir?
A estrela ergueu-se muito devagar sobre o Céu, a Oriente. O seu movimento era quase imperceptível. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em silêncio, sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a substância imortal da alegria.
E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela não podia ser de outra maneira.»

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